PLANO B
por Danilo Soares Marques
Logo após o almoço Padre Olinto saiu para a sua visita semanal aos enfermos da cidade de Porto Munhoz. Não era médico, mas suas palavras de esperança e consolo faziam muito bem aos fiéis.
Sentia-se gratificado apenas com os olhares de agradecimento daqueles que já não tinham mais esperança de melhoras.
Uma dessas pessoas era Dona Juliana, esposa do delegado Ambrósio Cerqueira. Já há algum tempo ela vinha lutando contra um câncer de mama. A demora no diagnóstico fez com que a doença se tornasse irreversível.
O sucesso no combate à doença podia estar na informação às mulheres, pois quanto mais rápido fosse diagnosticada e tratada, maiores seriam as chances de tratamento e cura da paciente. O caminho que ela fazia, entre o posto de saúde e o serviço de oncologia, podia ser decisivo para uma orientação importante ou o diagnóstico de uma cirurgia.
Infelizmente, por falta de informação ou comodismo, Dona Juliana quando descobriu a doença já estava em estado bem adiantado. Era tarde demais para qualquer tratamento.
Padre Olinto abriu o pequeno portão de ferro ao lado da residência de Ambrósio Cerqueira. A velha construção servia de residência e sede da delegacia de Porto Munhoz e fora uma concessão da prefeitura. A duzentos metros dali ficava a cadeia municipal, guardada apenas por um carcereiro, que, sem ter muito que fazer, passava os dias a jogar dominó no bar em frente.
Encontrou Dona Juliana sentada em uma poltrona ao lado de um suporte de onde pendia um frasco de soro. Suas feições demonstravam um enorme sofrimento e angústia.
Olinto sentiu pena das condições da outrora bela mulher que, agora, era apenas um rascunho mal-acabado do que fora no passado. Solícita como sempre, Margarete recebeu o padre com um beijo na sua mão e um murmúrio ininteligível nos lábios.
Margarete, a enfermeira contratada para cuidar de Dona Juliana, não poupava esforços para amenizar o sofrimento da enferma. Morena clara, com seus cabelos negros, olhos verdes, nariz fino e andar aristocrático, despertava em todos os homens da cidade, sentimentos pecaminosos. Por sua vez, Margarete não disfarçava suas emoções, deixando o delegado muitas vezes sem jeito. Sonhava um dia tornar-se senhora Cerqueira, pois com sua experiência, tinha consciência que Dona Juliana não iria durar muito tempo.
Na Casa em frente morava Victor, já de meia idade, baixo, cabelos grisalhos e beirando o sobrepeso. Havia bastante tempo que ele e Margarete andavam se negaceando. Por enquanto apenas trocavam olhares carregados de desejo e malícia sem outras consequências. Quem sabe fosse o plano B?
―Como passou a noite? ―perguntou o padre, dirigindo-se à Dona Juliana sem se dar conta da inutilidade da pergunta.
―Indo, meu filho! ―disse a enferma com voz entrecortada por murmúrios de dor.
―Tenha fé, irmã, ―disse o padre, filosófico, ―que Deus sabe o que faz. Ele não nos dá um fardo maior do que aquele que podemos carregar.
―É verdade, padre, mas este fardo está pesado demais. Lamuriou-se Juliana.
―Devemos pedir ao Senhor, não um fardo mais leve, mas sim, braços mais fortes para poder carregá-lo. ―continuou Sebastião.
―Padre, o senhor aceita um café? Acabei de passar. ―perguntou Margarete.
―Aceito, sim, minha filha, obrigado. ―disse o padre sentando-se em uma poltrona à frente de Dona Juliana.
Demorou-se mais um pouco a discorrer palavras de conforto à enferma e, desculpando-se por não poder ficar mais, pois ainda tinha muitas visitas a fazer, despediu-se desejando melhoras, respondido com agradecimentos e beijos de mão.
Neste exato momento Ambrósio adentrou no recinto estatelando-se no sofá à sua frente com gemidos de dor e uma cara de sofrimento.
Ambrósio Cerqueira, beirando a casa dos cinquenta anos, não via o dia de se aposentar. Baixo, gordo e com um ar enfarruscado a contrair-lhe as feições, contava os dias em que finalmente iria descansar no sítio que acabara de comprar na região de Morro Baixo. Pretendia plantar mandioca e criar algumas galinhas. Já estava cansado da vida de delegado, não que tivesse muito trabalho, mas exatamente pela monotonia de seu trabalho. Vez que outra uma briga entre vizinhos ou um bêbado incomodando os moradores da região. Roubo nem pensar. Todos se conheciam e os sujeitos de fora eram olhados com desconfiança e vigiados por todos os habitantes da cidade.
Havia um bom tempo que andava ensimesmado com uns barulhos estranhos que escutava durante a noite. Tinha a sensação de ouvir vozes e cochichos mas, nunca se deu ao trabalho de verificar a fonte dos estranhos ruídos. Deveriam ser ratos, pensou.
—Você precisa cuidar da sua saúde! —exclamou o padre, dirigindo-se a Ambrósio.
—Está perto o dia do meu descanso, padre! —respondeu Ambrósio.
—Bom, fiquem com Deus e cuidem-se.—disse o padre à guisa de despedida.
Assim que o padre se afastou, ergueu seu gordo corpo da confortável poltrona na qual estava instalado e partiu para sua rotina diária. Conforme costume já adquirido desde a doença da sua esposa, diariamente fazia as compras para casa, tarefa esta que sua mulher, quando boa de saúde, fazia com prazer inusitado. Ele, pelo seu lado, detestava estes afazeres, mas teve que se adaptar rapidamente à nova situação.
Repassou a lista de compras fornecida por Margarete, instalou-se ao volante da viatura policial que há muito não era usada para diligências criminalísticas e dirigiu vagarosamente pelas ruas da cidade. Açougue, padaria, mercado, farmácia.
Seguia metodicamente o roteiro traçado.
Teria que aproveitar este tempo disponível, pois grande parte do comércio da cidade encerrava suas portas às 12:00 horas de sábado. Queria acabar logo com suas tarefas, pois à tarde tinha vários compromissos com seus colegas de jogo e de política.
Passou pela praça principal e lançou um breve olhar para o vistoso relógio de ouro 18 quilates que trazia no pulso. Mais uma vez pediu proteção à Virgem Maria e que lhe desse forças para aguentar mais um tempo antes de sua aposentadoria.
As folhas das árvores brilhavam ao sol da primavera e a praça já começava a receber seus habituais frequentadores.
Já na delegacia, Ambrósio, taciturno, pensava no que a vida lhe reservara. Agora que estava próximo a se aposentar, teria que encarar a realidade e cuidar de sua esposa. Talvez tivesse que adiar seus sonhos por mais algum tempo e dedicar-se inteiramente aos cuidados com sua mulher.
Por mais que pensasse não achava uma saída para esta incômoda situação. Chegou a pensar em cometer suicídio, mas logo descartou essa ideia. Acharia uma saída, era uma questão de tempo.
O tilintar do telefone interrompeu seus negros pensamentos.
―Alô!
―.......................
―Meu Deus! Já estou indo....
―Firmino! Toma conta da delegacia. Estou indo para casa. ―Qualquer coisa liga para o meu celular.
―Pode ir tranquilo, doutor. ―disse Firmino, o escrivão, concordando. ―Deixe tudo comigo!
O pior havia acontecido. Pela voz de Margarete, a enfermeira, a coisa parecia ser séria. Ela nunca ligava para a delegacia. Sempre dera conta do recado, usando de toda a sua experiência de longos anos cuidando de doentes terminais.
Ao chegar a casa Ambrósio já encontrou inúmeras pessoas, na sua maior parte vizinhos, ocupando toda a residência. Padre Olinto, que havia acabado de realizar a extrema-unção, veio ao seu encontro, relatando os últimos acontecimentos. Victor, o vizinho que morava em frente, consolava Margarete, com gestos e palavras de conforto.
O sol do meio-dia brilhava no alto do céu sem nuvens.
A vida na pacata cidade seguia seu curso. Em algum lugar alguém havia nascido. Em algum lugar alguém havia morrido.
Neste preciso momento, em algum lugar do mundo, o sol brilhava. Neste preciso momento, em algum lugar do mundo, alguém observava as formas fantásticas que as nuvens desenhavam no céu azul.
Neste preciso momento, em algum lugar do mundo, alguém sorria e alguém chorava. Alguém amava e alguém sofria. Alguém acabou de despertar no preciso momento em que alguém adormecia. Alguém nascia e alguém morria.
Neste preciso momento Porto Munhoz seguia indiferente aos problemas do mundo.
Após o velório de dona Juliana, o coração de Ambrósio não aguentou tantas emoções e acabou parando de vez. Morte súbita, disseram os médicos.
De repente, Margarete viu-se sozinha, dona da casa, como sempre fora o seu sonho mas, sem o delegado.
A noite parecia mais escura e o silencio, aterrador. Margarete não conseguiu dormir. Como poderia, com todos os fantasmas perambulando pela residência. Ouviu um barulho na porta. Parou para escutar melhor:
Toc, toc.
Prendeu a respiração e escutou mais um pouco.
Toc, toc
Dirigiu-se à porta de entrada e perguntou com voz trêmula:
―Quem é?
―Sou eu!
―Eu quem?
―Eu, uai, não ‘tá’ reconhecendo minha voz?
―Voz de quem?
―Minha.
―Que que ocê qué?
―Entrar, ora!
―Entrar, ‘pra’ quê?
―Quero te perguntar uma coisa.
―Que coisa?
―Deixa eu entrar que eu te digo
―Diz daí!
―Não posso. É muito importante.
―Começa com que letra?
―Como com que letra?
―A palavra, começa com que letra!
―Santo Deus! Começa com “V”.
―”V” de vaca?
―É, “V” de vaca!
―’Tá’ me chamando de vaca?
―Não é nada disso! É “V” de você!
―E a segunda?
―Segunda o quê?
―A segunda palavra começa com quê?
―Mais Santo! Começa com “Q” de quer!
―Quer o quê?
―Você...Quer...Casar...Comigo?
―Porque não disse logo. Entra!
Assim que abriu a porta, Margarete se atirou nos braços de Victor. “Rei morto, rei posto”, pensou.
O plano B estava em andamento.
FIM